Publicado originalmente no site Brasil El País, em 4 JUN 2018
Se o cérebro precisa de açúcar para funcionar, por que
devemos parar de consumi-lo?
Mecanismo que abastece nosso organismo de glicose é um
exemplo de sobrevivência
EVA VAN DEN BERG
Como disse o escritor e químico italiano Primo Levi em seu
livro O Sistema Periódico, de 1975, “o destino do vinho é ser bebido, e o da
glicose é ser oxidada”. Assim, não é à toa que esse composto orgânico é o
principal combustível que fornece energia às células do organismo. Também aos
neurônios do nosso cérebro, que, assim como o de todos os mamíferos, precisa de
uma dose constante de glicose para funcionar.
No entanto, a OMS recomenda reduzir o consumo de açúcar
livre (o que se acrescenta, não o que se encontra de forma natural em alguns
alimentos como a frutose, nas frutas, ou a lactose no leite) a menos de 10% da
ingestão calórica total do dia, e inclusive estimula que esse consumo seja
inferior a 5%, pois isso “produziria benefícios adicionais para a saúde”. Neste
ano, também a indústria alimentícia entrou num processo de reformulação de seus
produtos para reduzir esses açúcares, além do sal e das gorduras saturadas. Mas
por que, se a glicose é fundamental para o funcionamento do cérebro, não é bom
que comamos açúcar?
Como o cérebro ‘come’ açúcar
A glicose – o termo vem do grego e significa algo como
“açúcar de mosto” – é um composto orgânico muito comum na natureza, uma forma
de açúcar formado por grandes moléculas que, através da chamada oxidação
catabólica, se transforma em moléculas menores e mais simples, um processo que
libera uma importante quantidade de energia utilizada para realizar o conjunto
de reações químicas e fisicoquímicas que ocorrem em todas as células vivas do
organismo, o que se conhece como metabolismo.
O cérebro especificamente consome 5,6 miligramas de glicose
por cada 100 gramas de tecido cerebral por minuto, segundo Ramón de Cangas, da
Academia Espanhola de Nutrição e Dietética. No cérebro de um indivíduo adulto,
acrescenta ele, a maior demanda por energia procede dos neurônios, que têm
gostos exigentes: para elas a glicose é primordial, porque, diferentemente das
células comuns, que também obtêm energia de outras fontes, os neurônios
dependem quase que exclusivamente dessa substância. Por isso, embora o cérebro
represente menos de 2% do peso corporal, gasta até 20% da energia total que o
organismo fabrica a partir da glicose; é o seu principal consumidor.
De onde tiramos a glicose
A glicose, portanto, é um componente essencial para a vida,
e especificamente para o correto desenvolvimento das funções cerebrais.
Entretanto, embora seja um açúcar simples, ou monossacarídeo, não é preciso
comer açúcar nem alimentos doces para que o organismo conte com a quantidade necessária,
um argumento ao qual frequentemente a indústria alimentícia recorre para
justificar a inclusão de açúcares nos seus produtos.
Todos os alimentos que ingerimos acabam sendo transformados
em glicose, especialmente os carboidratos: cereais, tubérculos, leguminosas,
laticínios, frutas e hortaliças
“De fato, se uma pessoa adotasse uma dieta livre de açúcar
isso não representaria nenhum problema: o organismo tem vários mecanismos para
obter glicose”, aponta De Cangas. “Além de obtê-la através da alimentação,
nosso corpo pode sintetizá-la a partir do glicogênio, um polissacarídeo
armazenado no fígado e, em menor quantidade, nos músculos. Também se gera
glicose a partir de subprodutos das gorduras chamados corpos cetônicos, os
quais, em situações de hipoglicemia (baixo conteúdo de açúcar no sangue), podem
suprir essa carência.” Outras fontes de energia são os ácidos graxos. “A
gordura se armazena em forma de triacilglicerídeos (uma molécula de glicerol e
três de ácidos graxos). Nos humanos, os ácidos graxos não podem originar
glicose, mas o glicerol pode, embora em quantidades mínimas.”
A quantidade certa: nem muito nem muito pouco
Definitivamente, todos os alimentos que ingerimos acabam, em
maior ou menor medida, sendo transformados em glicose, ou seja, em energia para
o organismo. O tipo de alimento de mais fácil transformação é o grupo dos
carboidratos. Eles incluem os açúcares livres, acrescidos a uma infinidade de
produtos, mas também muitos outros, como os cereais, tubérculos, leguminosas,
laticínios, frutas e hortaliças. Se mantivermos uma dieta saudável e nosso
organismo funcionar bem, não há por que se preocupar: o suprimento de glicose
está assegurado, mesmo que nunca mais comamos cup cakes. A evolução já se
ocupou de criar recursos para obter o principal suprimento de energia celular.
Mas, como é sabido, o organismo pode falhar por múltiplas
razões, também no que diz respeito à obtenção de glicose. Quando o fornecimento
não é adequado, ou seja, quando a quantidade de glicose no sangue é excessiva
ou insuficiente, ocorrem, respectivamente, hiperglicemia e hipoglicemia.
O diabetes é uma das causas mais disseminadas dessa
disfunção, e se deve à resistência à insulina entre os afetados por essa
doença. A insulina é o hormônio que se encarrega de regular a quantidade de
glicose no sangue. Se ela não funciona, pode ocorrer tanto a hiperglicemia (de
forma mais frequente) como a hipoglicemia, e as consequências disso são sempre
negativas. “Os níveis permanentemente elevados de glicose no sangue podem
causar danos em vários órgãos do corpo, como a retina, o rim, as artérias e o sistema
nervoso”, diz De Cangas. “Por outro lado, os níveis baixos de glicose (por
exemplo, causados pelo diabetes tipo 1 descontrolado) podem conduzir inclusive
a um coma diabético e à morte do paciente.”
Quando o cérebro pede comida, está nos mandando um SOS
Se a glicose escasseia surgem várias disfunções e doenças,
conforme evidenciou um estudo realizado por pesquisadores da Alemanha e Estados
Unidos. “O metabolismo da glicose proporciona o combustível para a função
fisiológica do cérebro através da geração de ATP – adenosina trifosfato, a
molécula-estrela no processo de obtenção de energia celular nas reações
químicas –, a base para a manutenção celular neuronal e não neuronal, assim
como para a geração de neurotransmissores”, explica o estudo.
“Se o metabolismo da glicose for alterado”, diz De Cangas,
“podem ocorrer várias alterações neurológicas, bem como obesidade, diabetes
tipo 2, demência e Alzheimer: um dos sinais mais precoces dessa doença, aliás,
é a redução do metabolismo da glicose cerebral”.
Cabe destacar, acrescenta De Cangas, que “se os neurônios
não podem obter a glicose que necessitam, pode-se desencadear inclusive um
processo de morte celular por autofagia; ao não contar com o alimento
necessário para funcionar, estas células cerebrais obtêm a energia de si mesmas
até morrerem”.
Por isso, quando os níveis de glicose estão abaixo do
necessário, os neurônios enviam uma série de sinais de alarme ao conjunto do
organismo: problemas de visão, irritabilidade, ansiedade, suores, enjoo,
sonolência, confusão, fraqueza, fome… Um acervo de mensagens que levam a pessoa
a corrigir essa falta de glicose ingerindo alimentos. Se a glicose não
aumentar, podem ocorrer convulsões, desmaios e inclusive um coma, que poderia
terminar com uma morte neuronal. Por outro lado, os sintomas da hiperglicemia
(uma concentração de açúcar no sangue superior a 180 miligramas por decilitro)
são sede desmesurada, dor de cabeça, problemas de concentração, visão
imprecisa, micção frequente e perda de peso.
“Em seu caminho ascendente, que leva ao
equilíbrio e por fim à morte, a vida cria uma alça e se agarra a ela”, diz
Primo Levi sobre o processo pelo qual a glicose se oxida e vira energia. Sem
dúvida, essa biomolécula é um bom exemplo da maravilhosa capacidade do
organismo de adotar as mais intrincadas maneiras de se aferrar à existência.
Texto e imagem reproduzidos do site: brasil.elpais.com
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